8.5.06

"A minha mãe olhou-me com um olhar de preocupada e bonita e perguntou-me o que é que aconteceu, filho? Com a vergonha do meu olhar escondido a ser resposta que só a minha mãe entendia, virou-se para a porta e mandou o senhor violinista ir para o quarto, e mandou a escrava miriam ir buscar-me leite com chocolate e torradas e biscoitos. Ficámos sozinhos. A cobrirem o chão da sala, os gatos dormiam. A minha mãe, sem precisar de me ouvir, disse não estejas triste, filho. Não desanimes. A minha mãe disse que gostava muito de mim. Aminha mãe pousou a mão sobre a minha. Sentir a sua mão nas costas da minha mão, o peso e o calor da sua mão, foi sentir que também eu gostava muito dela. Levantei a cabeça para olhar e, nesse momento, sentimos tanta vontade de nos abraçarmos, porque soubemos mesmo que éramos duas pessoas a ser a mesma pessoa, porque soubemos que a beleza do amor que sentíamos, o afecto, era sentido exactamente da mesma maneira, com as mesmas formas, pelo outro. A minha mãe e eu sentíamos a mesma coisa quando olhávamos a ser mãe e filho. E eu, como se descobrisse, senti toda a força infinita do amor que nunca muda, do amor que permanece igual depois de tantos anos e anos. A minha mãe fraca e bela, linda. A minha querida mãe que me pegava ao colo e que, naquele dia, já eu era um homem, já fazia a barba, e achava por isso que era um homem, já me apaixonava e padecia por mulheres, e achava por isso que era homem; a minha querida mãe, naquele dia, pousou a mão obre a minha mão, e eu olhei nos seus olhos lindos e castanhos, doces e tão belos de menina, e soube tão profundamente que o nosso amor era mais imutável do que as rochas, do que a montanha, do que o céu todos os dias, todos os dias, todos os dias até ao fim do último fim depois do fim da eternidade. E, só quando a escrava miriam entrou com o tabuleiro que trazia leite com chocolate e torradas e biscoitos, a minha mãe levantou a mão, como se levantasse uma pena. O peso da sua mão, levemente sobre a minha, como se ainda lá estivesse. A escrava miriam saiu. A minha mãe pousou-me o tabuleiro no colo. E bebi o leite morno a olhá-la, e comi as torradas a olhá-la, e comi os biscoitos a olhá-la. A chuva batia contra os vidros da janela e contra o dia cinzento. E quis ser sempre feliz como naquele instante. Sempre feliz, para nunca decepcionar a minha mãe. Sempre feliz, para a minha mãe ter sempre orgulho em mim."

in UMA CASA NA ESCURIDÃO, José Luís Peixoto

1 comment:

betinha said...

(in)exaustivamente redundante. não é assim que nos sentimos ao descrever e demonstrar afecto? todas as palavras dizem o mesmo e todas nunca parecem chegar... :)