8.1.05

Hoje adormeço-me assim, na simplicidade das coisas boas e bonitas

<< Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural so que resulta do pequeno tamanho da sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se o mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade...

Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura.

Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os grandes astros, e sou livre como um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo.

Sou do tamanho do que vejo! Cada vez mais penso nesta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. Sou do tamanho do que vejo! Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até as altas estrelas que se reflectem nele, e, assim, em certo modo, ali estão.

E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. Sou do tamanho do que vejo! E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meionegro do horizonte.

Tenho vontade de erguer os braços e gritar coisas de uma selvajaria ignorada, de dizer palavras aos mistérios altos, de afirmar uma nova personalidade larga aos grandes espaços da matéria vazia.

Mas recolho-me e abrando. Sou do tamanho do que vejo! E a frase fica-me sendo a alma inteira, encosto a ela todas as emoções que sinto, e sobre mim, por dentro, como sobre a cidade por fora, cai a paz indecifrável do luar duro que começa largo com o anoitecer.>>


Fernando Pessoa / Bernardo Soares - Livro do Desassossego

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